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BORORO - Reconstruindo a identidade
Funeral Bororo - Entre os episódios que marcam o ciclo de vida dos Bororo, a morte é um dos mais importantes. Neste período de aproximadamente três meses de ritos funerais, os jovens são familiarizados...

Bororo - Reconstruindo a identidade

O sol ardia tórrido no cerrado descampado, castigado pela estiagem prolongada e pelas queimadas. Não tinha vento, apenas um bafo quente quando deixamos a rodovia BR-070 e adentramos no território Bororo. A TI Meruri possui 82.301 hectares, localizada no município de General Carneiro, estado de Mato Grosso, a aproximadamente 460 quilômetros de Cuiabá. Nesta área homologada em 1987, vivem pouco mais de 400 índios, distribuídos entre as aldeias Meruri e Garças.

Nosso objetivo é conhecer um pouco do cotidiano dessa sociedade indígena e documentar parte dos ritos funerários em homenagem ao último grande chefe ritual Bororo da Aldeia Garças. O líder José Carlos Meriri Ekureo estava com aproximadamente 80 anos quando faleceu, em 19 de junho passado. Os ritos fúnebres dos Bororo, costumam durar por volta de três meses. O corpo de José Carlos ainda descansava no centro da aldeia, junto ao “baito”, a casa dos homens, em uma cova rasa, sob um manto de terra e folhas de palmeiras. Em breve a alma do velho Bororo estará livre para percorrer seu caminho até a aldeia dos que morrem. Porém a comunidade ainda teria de aguardar algumas semanas para que os ossos estivessem completamente despojados das carnes e pudessem ser finalmente enterrados ou depositados em uma lagoa próxima da aldeia, como manda a tradição. No caso do velho José Carlos, o ritual seria finalizado com uma bênção católica e os ossos sendo enterrados no cemitério da aldeia vizinha, Meruri, onde se instalou uma Missão Salesiana em 1902. Já se passaram 112 anos desde que os religiosos da ordem salesiana se radicaram no território Bororo. Neste longo processo de contato os grupos Bororo sofreram grandes e importantes transformações. Aprenderam a falar e a rezar com os não-índios, enfraqueceram sua língua, seus rituais foram proibidos total ou parcialmente, suas estruturas culturais e suas conexões com outros grupos indígenas vizinhos foram alteradas para sempre. Há algum tempo um processo de autocrítica dos missionários, onde se constatou o aniquilamento cultural dos Bororo, acabou por culminar com o resgate da língua indígena, a partir do ensino bilíngue (português/bororo) na aldeia Meruri. Uma iniciativa positiva que surge como esperança de resgate cultural de estruturas que há muito se encontram fragilizadas, ocupando as sombras sociais e escondidas na identidade de cada Bororo. 

 

Funeral Bororo

Entre os episódios que marcam o ciclo de vida dos Bororo, a morte é um dos mais importantes. Neste período de aproximadamente três meses de ritos funerais, os jovens são familiarizados com os valores desta sociedade dualista. É quando são lembrados das regras de reciprocidade e iniciados na vida adulta. Os cantos são elementos fundamentais para transmissão do conhecimento. Os rituais são essenciais para a reconstrução da sociedade desequilibrada pela morte. A cada funeral, todos os mortos são lembrados por seus parentes vivos e por seus representantes rituais por meio de um par de cabacinhas tocadas pelo condutor do cerimonial. É quando se dá o encontro entre o mundo dos vivos e o universo dos mortos. Os ritos funerários são oportunos para a reafirmação de oposição e complementaridade entre as duas metades em que se dividem a aldeia e a própria sociedade Bororo: os eceráe e os tugarégue. Cada uma dessas metades são subdivididas em clãs com deveres muito bem definidos: do fornecimento de tintas para as pinturas corporais e as penas para os adornos plumários, às representações rituais, que caberão ao clã da metade oposta à da família do morto.

 

A chegada à Aldeia Garças e os rituais

Terezinha, a filha, e Jacira, a neta do ancião recém-falecido, tinham marcas de escarificação nos braços quando nos encontramos em uma sexta-feira para a primeira conversa com o cacique da Aldeia Garças, Emílio Cugoxereu, marido de Jacira. É parte do ritual funerário os parentes próximos, especialmente as mulheres, se arranharem. No caso das duas, como houve perda da tradição, elas o fizeram com cacos de vidro. É mais uma maneira de expressarem o luto, a profunda tristeza pela morte de um ente querido. Naquele fim de semana, eu e o fotógrafo Renato Soares acompanhamos desde a confecção de duas grandes rodas com talos de folhas de buriti, uma simbolizando o homem e outra, a mulher, chamadas “marido kurireu”, até a utilização das mesmas durante os rituais de sábado e do domingo, entre eles o Aije (espírito misterioso), dentro do baito e também no pátio central. Na noite de sábado a celebração foi longa ao redor do corpo e diante das duas grandes rodas. O chefe de cabacinha e condutor da cerimônia era também o puxador de cânticos que contavam a história de heróis Bororo e de seres mitológicos, e exaltavam a vida do falecido. Em dado momento, os homens se revezavam com as rodas alçadas à altura da cabeça, e com elas dançavam e saltavam freneticamente, ao ritmo da música.

Em algumas etapas, não é permitida a presença de mulheres e crianças, sob a crença de que teriam a morte próxima. Elas ficam dentro das malocas, um tanto nervosas diante da suposta presença dos espíritos em rituais que apenas os homens participam. Eu fiquei em uma das casas, com Jacira, mulher de 33 anos, a filha dela Ana Paula, de 20, e os netos pequenos.

Mas foi na tarde de domingo que se deu o ponto alto dos ritos funerários. Homens, mulheres, jovens e crianças se pintaram com o negro do jenipapo e o vermelho do urucum. A simetria e o perfeccionismo dos desenhos impressionam por realçar a beleza exótica do rosto de jovens e crianças. As mulheres pintam filhos e netos e todos vão para o centro da aldeia. No local, homens maduros e jovens índios, vestidos com parikos (cocares) majestosos de penas de arara azul e mantos com pele de jaguatirica entoaram novos cantos de evocação dos espíritos ancestrais e dançaram, por cerca de quase três horas, ao redor do corpo do ancião José Carlos.

Nós, os braedo (não-índios), também fomos convidados a dançar em homenagem ao finado. Emocionante!

Aquele foi um fim de semana de esforço coletivo entre os moradores da aldeia Garças e de Meruri. Representantes de outras aldeias Bororo também compareceram. A realização de um funeral ritualista sempre é um ato de coragem e respeito, que exige empenho e determinação. Em que a tristeza pela morte é, de certa forma, neutralizada pela riqueza do aprendizado e pela vontade de celebrar a magnitude da vida Bororo.

Setembro/ 2014

Texto: Lucíola Zvarick , jornalista

Fotos: Renato Soares

Data:
26/05/2016
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xp6pNsbIivs
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Data:
26/05/2016
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